terça-feira, 21 de dezembro de 2010

CAPÍTULO II - Waldfraiss






O sol ainda estava a meio caminho de seu ápice quando foram ouvidas as primeiras rajadas dos canhões trazidos pelos navios inimigos. As pesadas esferas de metal, viajando a uma velocidade espetacular, riscavam os céus com sons agudos e atingiam o solo em explosões destruidoras. A cada projétil, dezenas de homens vindos das terras mais remotas de Sieghard, desde Askalor até a longínqua Vahan Oriental, pereciam em meio a gritos de dor e gemidos de desespero. Já eram muitos os feridos naquelas idas. O número de mortos, porém, só seria conhecido no florescer da próxima aurora.

Após a primeira fumaça de destroços e pólvora se dissipar, foi possível avistar à distância, em cada navio, vários estandartes fulgurantes, estampados com a imponente figura da nação do Caos: a lua hexa-raiada. O emblema, que simbolizava o reflexo da luz solar emanando da superfície do astro, havia sido adotado pelos invasores ainda em um tempo longínquo, há quem diga que em uma das eras anteriores. O seu tremular bailava como uma espécie de dança triunfal, ao anunciar o destino que havia sido reservado para aquelas fortificações de madeira e pedra na praia.
Não se poderia esperar que Linus, o generalíssimo da armada que se aproximava, tivesse a habilidade magistral — ou sobrenatural — de contornar as gigantescas belonaves por entre tão escarpado litoral. Por isso, não se supunha que o rei e seus vassalos viessem a mobilizar um efetivo tão numeroso ou tão preparado, que tivesse condições plenas para enfrentar o inimigo de igual para igual.
Nem mesmo os mais experientes timoneiros ou capitães de fragata deixariam de testemunhar, atônitos, com os olhos arregalados e a espinha coberta de gelo, o difícil, mas ao mesmo tempo tão suave movimento das colossais máquinas de guerra marítimas. Todas projetadas e construídas durante incontáveis verões, muito mais do que um só homem poderia viver. Viver para observar o seu deslizar mortífero sobre as águas negras de Maretenebræ, permitindo um ataque fulminante e ainda mais assustador.
De dentro das embarcações, os algozes de Sieghard gargalhavam enlouquecidamente após cada tiro certeiro, cada nuvem de fumaça e poeira levantada, cada som estrondoso como trovões em uma tempestade de verão. Por vezes, ouvia-se alguém gritar com voz forte: “Waldfraiss!” Auroras depois, soube-se que se tratava de uma declaração sacerdotal, de origem desconhecida, mas que no arcaico idioma de Sieghard significava “Que reine a liberdade!”
A sentença, a partir daquele momento, transformou-se em um brado de batalha invencível. Seus ecos reverberaram por um longo tempo. Chegou-se a imaginar que fosse durar para sempre, ao menos naquela nefasta manhã.
As Falésias de Sethos, distantes quase 20 milhas ao sul do Velho Condado, estavam repleta de fortes improvisados e torres de sentinela do reino. Não era esperada uma iniciativa tão avassaladora por parte dos invasores, seja lá quem fossem. Parecia que até mesmo as forças da natureza lhes eram aliadas. O Grande Mar, tão violento e impiedoso, permanecia sereno diante das investidas, como um ancião esperando pela morte certa.
À medida que as hordas se aproximavam, prontas para desembarcar, os oficiais encarregados de guardar o litoral tratavam de mobilizar seus efetivos o mais rapidamente possível, e isso queria dizer de forma um tanto desorganizada. Os bombardeios, é claro, não cessavam enquanto isso. Após um quarto de hora desde o primeiro disparo, um dos postos de vigilância não suportou mais e desabou, lançando ao chão corpos, mantimentos e armas, e também boa dose de esperança dos que lutavam.
Ao longe, cavalgando desesperadamente por entre as torres de vigília, um dos generais de Sieghard, de nome Amir, ordenava aos gritos:
— Balista!
Como por encanto, um número grande de soldados — algo entre 250 e 300 — deixou seus postos principais em prol de um objetivo: a última chance de se salvarem.
Todavia, a superioridade técnica e tática da marinha de Linus, aliada à surpresa dela derivada, tomava conta das almas e corpos de todos aqueles que não vinham pelo mar.
Divididos em grupos de 15 a 20, os soldados subiram às torres que ainda restavam. Àquela altura, não era de se estranhar que os homens mais covardes — ou mais prudentes — fossem deixando, em fuga, o pequeno campo de batalha. Aos que ficaram, por sua vez, restou-lhes a pesada missão de atacar as 120 belonaves inimigas com a ajuda de suas balistas. As enormes setas de ferro rasgavam o ar em direção à linha adversária, conseguindo algum sucesso em meio a muitas tentativas frustradas.
As naves não paravam de surgir por detrás das escarpas, contornando-as sem dificuldade. Alguns gritos de vitória já ecoavam guturais em pelotões localizados mais à frente da esquadra.
Pouco depois, os homens que estavam na praia observavam inertes os primeiros sinais de ancoragem dos navios. Muito embora se soubesse que o calor escaldante dessa época do ano podia causar ilusões fortes, o baixar dos primeiros botes, acerca de meia milha da praia, não era produto de nenhuma alucinação. Como em uma densa nuvem de gafanhotos, os pequenos barcos iam se multiplicando rápida e desenfreadamente. Era inconcebível tudo aquilo, seja para quem estava ali ou para aqueles que, mais perto ou mais longe, tranquilos em seus leitos ou labutando em suas sinas quotidianas, jamais poderiam supor um ataque de proporções titânicas à sua Terra-Mãe.
O desembarque fez-se em seguida. Não demorou muito até que arqueiros e homens de infantaria corressem e gritassem de forma ainda mais selvagem. Enquanto flechas eram disparadas repetidas vezes, os infantes subiam com largas passadas, portando armas de todos os tipos e tamanhos, desde as eficientes espadas curtas até os temíveis machados de batalha.
Por horas, os arredores do Velho Condado foram palcos de uma carnificina sem igual.
A princípio, não se deixariam vivos para contar a história, as defesas da Ordem estavam em menor número, além de bastante fraquejadas após uma manhã inteira de investidas.
Os mais velhos pereceram primeiro, enquanto que os mais jovens esperariam um pouco mais — para morrerem na próxima saraivada de tiros, para viverem e testemunharem o desembarque de Linus e sua coorte, ou ainda para serem dizimados no combate corpo-a-corpo.

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