terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Capítulo V - Shifra (O Flagelo de Dernessus)

http://rlb-art.deviantart.com/

A história contada a seguir provém de uma forte tradição oral siegarda que perdura até as atuais auroras nas terras do sul. A veracidade dos fatos e a época em que se deram não podem ser comprovadas, assim como a sua cronologia. No entanto, sendo verdade ou não, tal relato é comumente difundido com o intuito central de educar as crianças quanto aos caprichos de Destino, isto é, para respeitá-Lo e temê-Lo. Dependendo da região, ele pode aparecer em forma de cantigas de roda, ou mesmo de canções de ninar. Embora de cunho infantil, o final da história mostra-se trágico e pode assustar o ouvinte, apesar da benevolência da protagonista. Não se sabe se o final verdadeiro foi perdido ou cortado do relato original, ou se sua história foi modificada, visto que seu desfecho dá margem à continuidade. De qualquer forma, não se pode negar um fundo alegórico, já que não se tem conhecimento de muito do que é relatado como a tal prática da “Purgação” e a aldeia de camponeses ao sul do continente.

Este relato, sempre contado em terceira pessoa, e sujeito a floreios do próprio intérprete, vem na forma de conto de fadas. Ele conta a história de Shifra, uma honrada sacerdotisa da Ordem, que viveu em algum momento do reinado de Marcus I, o Velho, e de como ela se salvou da ira de Destino. Uma outra versão, em forma de poesia, também foi documentada e traduzida por homens letrados e eruditos de Askalor, e será revelada no tempo oportuno.


“[...] Eram tempos de caos e devassidão. Até mesmo a Lei Real se encontrava impregnada destes atributos. Em outras palavras, seguida por homens bons, mas inconscientemente corrompidos. Sacerdotes, astrólogos, reis e rainhas. Entretanto, para o homem justo e leal a Destino, não estaria claro que algo estava longe da verdade? Não seria a falta de ação quanto ao abominável uma afronta aos ensinamentos de Ieovaris e todos os deuses da Ordem? Shifra, uma menina com até então 14 verões de idade, se perguntava toda aurora. E orava, no templo, para que Destino perdoasse os homens, pois sua ignorância não permitia saber o que estavam fazendo.

Iniciada há pouco tempo nos mistérios da Ordem, aconteceu que a mesma sacerdotisa fora convocada para participar de uma excursão real à Maretenebræ, a fim de assistir ao holocausto do próprio neto do rei, que nascera há poucas auroras. O menino havia chegado a esse Exilium muito fraco e doente. Por isso, tinha que ser sacrificado; “devolvido ao Grande Mar”, diziam. É sabido que, em tempos de maior barbárie, todas as crianças da nobreza siegarda que nasciam com essa marca tinham o mesmo fim. Eles chamavam este ato horrível de Purgação. Ora, como não pensar, a partir dessa prática abominável, que Sethos, o senhor do Caos, havia deixado seu legado na Lei Real de alguma forma?

Para a pobre fiel Shifra, cheia de ternura, recusar o convite não era uma opção. Aceitá-lo doeria em sua alma. O que seria mais desonroso? Desobedecer ao rei e às leis de seus ancestrais ou ser testemunha do extermínio de um inocente? Na noite anterior à viagem, ela se dirigiu ao altar e suplicou com ardor a Ieovaris que, pelos meios que julgasse mais convenientes, poupasse a vida da criança e, que, caso isso não viesse a acontecer, que perdoasse os homens envolvidos. Em seu leito, sozinha, caiu em prantos, e assim adormeceu com seu travesseiro embebido em lágrimas. Shifra era justa e honrada. Apesar de sua pouca idade, ela sabia o que era certo e errado aos olhos de Ieovaris, e lutaria para que o legado de Sethos se esvanecesse da Lei Real.

Na manhã seguinte o dia nascera sombrio, com nuvens tão escuras quanto o próprio Maretenebræ; os pássaros decerto não cantavam. Para Shifra, eram sinais de maus agouros, enquanto que para os homens comuns e insensíveis, apenas mais uma tempestade que estava por vir. De qualquer forma, os organizadores da excursão interpretavam como um sinal de que seria prudente agir com pressa.

A pequena sacerdotisa, ainda com olheiras e o rosto marcado pela trilha escura de lágrimas secas, fora acordada antes de o galo cantar por um turbilhão de vozes reunidas na frente do templo que habitava. Eram elas: do sacerdote-mor e todos os seus subordinados, do rei Marcus I, e o responsável pela sua proteção, Sir Cyngmund, capitão da Guarda-Real, e de seus soldados. Todos os cavalos já estavam devidamente arreados e traziam em suas celas homens armados até os dentes, alguns deles, inclusive, portando estandartes desfraldados.
Pouco antes de Shifra sair do templo para se juntar ao grupo, ela escutou alguém a chamando no escuro por detrás de uma coluna. Era a voz de um menino.

— Shifra! Ei, Shifra... — o garoto quase sussurrava.

A pequena jovem se aproximou, olhando para os lados e certificando-se de que ninguém mais a via. Nenhum menino ou homem poderia entrar no recinto das virgens da Ordem. Se um clérigo a visse com um garoto, seria expulsa do abrigo sacerdotal, podendo ser condenada à morte pela forca. Óbvio que esse não era o seu desejo. Mas com aquele homenzinho em especial, querer não era poder, pois perto dele suas pernas tremiam e a levavam em sua direção como se atraída por uma força misteriosa. Seria isso o amor? Perguntava a si mesma.

— Nikoláos! — Shifra o reconheceu, e foi ao seu encontro. — Sabe muito bem que não deveria estar aqui!

— É claro que eu sei! Senão não estaria no escuro sussurrando, né? — O rapazinho riu-se. — Soube que vai partir para longe.

— Sim... — A menina baixou a cabeça, soluçando.

— Ei... o que está acontecendo? Por que está assim?

— Não sei, Nik. Isso não pode estar certo! — Seus olhos lacrimejavam, e os lábios tremiam.
Nikoláos, não querendo ver a sacerdotisa choramingar, puxou a mão da amiga e colocou um pequeno objeto em sua palma.

— Toma. Vai manter você segura. É um pingente com o emblema dos cavaleiros da Ordem que minha mãe me deu. — Nikoláos fechou a mão de Shifra e a apertou. — Quando eu me tornar um cavaleiro, prometo te proteger e dar um fim à toda sua tristeza e acabar com todos os homens maus do reino. Mas vai demorar um pouco. Aí quando eu for nomeado, você me devolve, está bem?

A garota abriu um sorriso e ergueu os olhos, que de repente se encontraram com os do amigo. Com o susto, suas bochechas ficaram levemente rosadas.

— Tenho que ir, Nik — disse ela, enquanto saia correndo sem olhar para trás, bastante envergonhada.

A jornada seria longa pela Estrada Real e esperavam chegar à Maretenebræ apenas após a próxima aurora.

Como não poderia deixar de ser, sendo a única mulher na excursão, Shifra ficou responsável pelo bebê, ainda tão pequeno retirado da mãe. Quando ela o segurou, sentiu seu mundo estremecer e fora tomada de um sentimento de piedade nunca antes sentido. Da mesma forma, paz e tranquilidade se assomavam, como se os próprios deuses da Ordem tivessem se apossado de sua alma.

Era algo mágico o ser pequenino e frágil.

Naquele momento, ela se indagou como os homens podiam ser tão cruéis culpando aquela criança inocente por algo que nunca fizera. Ela sequer havia aberto seus olhos para o mundo.

Enquanto a viagem durava, Shifra não deixou de perceber que o tempo ruim e as nuvens carregadas assustavam até mesmo os animais, que preferiram permanecer entocados. Ainda assim, os pássaros em um voo tímido vinham acompanhar a excursão, talvez para visitar o bebê e dar sua saudação à mãe-natureza.

Após duas auroras de viagem, a excursão real chegou às proximidades de uma aldeia de camponeses, vizinha à costa sul de Sieghard. A comitiva acampou esperando a noite, pois o ritual de Purgação só poderia ser feito após o crepúsculo.

O local escolhido para o sacrifício ficava no alto da mais alta falésia de Bogdana, a pouco mais de uma milha do acampamento; um despenhadeiro colossal que se erguia do mar, terrível e profundo. No sopé, ondas gigantes do Grande Mar batiam contra a sua parede de rochas negras e um vento úmido e quente soprava de baixo para cima. Era o hálito do próprio Maretenebræ, diziam. Os que se aproximavam da encosta, não podiam deixar de sentir um frio gélido na espinha diante do terror presenciado.

Ninguém que porventura houvesse saltado dali tinha sobrevivido para contar história.
O tempo corria arrastado mais do que de costume, mas a noite enfim chegara e os sacerdotes prepararam o local para o sacrifício. Shifra foi obrigada a entregar o bebê depois de muita relutância. Consumia-se em prantos, não acreditando no que estava acontecendo, mas foi advertida a se comportar durante a cerimônia.

A Guarda Real, comandada por Sir Cyngmund, acompanhou o rei, que também estava sobremaneira transtornado; afinal, era ele quem deveria lançar a criança ao mar. Que avô em plena consciência gostaria de matar o filho de seu filho?

Os sacerdotes se posicionaram de modo a formar um corredor até a borda do despenhadeiro e, entre eles, o rei deveria passar com o bebê. Quando as tochas foram acesas e duas linhas paralelas de fogo bruxuleante surgiram na escuridão, projetando uma dança macabra de sombras e luz em rostos e figuras alucinadas, o ritual se iniciou. O sacerdote-mor recitou algumas palavras de invocação a Maretenebræ de modo que ele aceitasse a devolução da criança e que trouxesse uma nova criança forte e saudável para a continuação da linhagem de Askalor, da manutenção da Ordem e da paz no reino de Sieghard. Os outros sacerdotes apenas se limitavam a entoar o mantra específico para essa ocasião, a fim de acalmar a fúria do mar, enquanto Shifra assistia a tudo de olhos bem abertos em um canto da paisagem, com seu pensamento apenas em orações. A pequena sacerdotisa viu então o rei, que chegara com seu neto em colo, envolto em trouxas brancas. Sem demoras, ele percorreu o corredor de sacerdotes e parou a um passo do despenhadeiro, olhou para o firmamento coberto de ameaçadoras nuvens escuras e abaixou a cabeça durante alguns momentos. Em seguida, beijou a testa do bebê e finalmente o lançou ao mar.

Não se ouviu qualquer palavra a partir daí.

Após o ritual, todos voltaram ao acampamento, exceto Shifra, que ficou à borda do despenhadeiro sentada, chorando e perguntando-se se deveria continuar seguindo os caminhos da Ordem, visto que se decepcionara com o que acabara de presenciar. Naquela hora, as nuvens haviam se dissipado, dando lugar a um céu limpo e estrelado. Shifra olhou para o céu, surpreendida com a sua beleza. Depois que conseguiu conter as lágrimas, levantou-se e resolveu voltar ao acampamento. Foi assim que, antes de se virar, viu no horizonte uma estrela de fogo caindo vagarosa sobre o mar. A garota ficou ali observando durante um longo tempo, atônita. O que poderia significar isso? Um bom presságio? Ou seriam os deuses tentando se comunicar com ela?

Shifra ficou tão obcecada com o que vira que não reparou que, atrás dela, um grande incêndio se iniciara. O acampamento estava sendo atacado. Contava-se que Destino ficara com tanta raiva das atitudes dos homens, que enviara forças de Sethos para matá-los.

Depois daquela noite, o rei Marcus I nunca mais fora visto, nem Sir Cyngmund ou os sacerdotes.

Quanto à menina-sacerdote, suas pernas trêmulas não poderiam fazer muita coisa por ela. Assustada e acuada, manteve-se na borda do despenhadeiro. Os homens de Sethos logo foram ao seu encontro, perguntando de imediato onde estava o bebê. Sua resposta, no entanto, não faria diferença alguma. Assim que Shifra declarou que ele tinha sido jogado ao mar, também ela o foi. Mas quando seus assassinos viraram as costas, concluindo sua missão, milhares de pontos luminosos surgiram da escuridão, voando como os brilhantes vaga-lumes que encantam as margens dos rios em noites quentes. Naquele mesmo momento, Shifra ascendeu aos céus transformando-se em diminutas estrelas.

Hoje, ela habita nossa abóbada celeste na forma da décima quarta constelação, o mesmo número de sua idade, junto aos outros justos do reino, zelando não só pelo pequeno príncipe, mas por todos nós.
Eternamente.

0 comentários: