quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O dragão de barba negra

Conta-se que há muitas gerações, antes ainda da fúria do Grande Mar ter irrompido as terras baixas e inundado Exilium por praticamente uma estação, os dragões viviam pacificamente entre os homens de um país abundante em aurumnigro – o valioso metal negro.

Era uma época de aventureiros em busca de riqueza. Homens deixavam suas famílias em busca dos veios mais profundos desse negro metal que corrompia até os mais altos sacerdotes. Essas empreitadas, em alguns casos, ignorava o fato de que muitas cavernas inexploradas acabavam por se tornar o covil, mesmo que temporário, dos imensos répteis alados que por ali perambulavam. O sacrifício, entretanto – e falo daqueles que sobreviviam a este fatídico encontro –, era justificado se pelo menos uma quantidade do peso de uma unha de aurumnigro fosse encontrada e extraída daquele sombrio local.

Não que os dragões fossem capazes de atacar os homens – eles eram tremendamente insignificantes perante seu majestático tamanho, e suas armas rudes não os causavam nem menos uma coceirinha –, porém, entrar em seu apertado leito com um deles adormecido era bastante perigoso. Não se sabe por quais motivos, o aurumnigro das cavernas relaxavam os dragões, que caíam em sono profundo, e as consequências dos espasmos de seus sonhos reptilianos eram desastrosas: bastava um espirro de sua temível bocarra para que corpos fossem queimados, ou uma mera "ajeitadinha" de posição para que homens fossem esmagados. A verdade é que, dentre aqueles que eram surpreendidos por tais episódios, poucos voltavam para contar a desafortunada história. Para o dragão, todavia, acordar com o cheiro de carne assada era indiferente.

Os relatos, às vezes fantásticos – dos quais muitos criavam heróis –, chegavam aos ouvidos das crianças e acabavam por florescer o instinto aventureiro de muitas delas. Com os pequenos Ian e Mia não foi diferente. Impulsionados pelo conto do “cavaleiro que havia matado um dragão para resgatar a princesa”, muito embora a realidade seja menos romântica – o cavaleiro em questão era responsável por dar comida aos porcos na taverna local, e havia fugido do covil da besta com uma pepita de aurumnigro, logo se tornando rico e casando-se com uma bela dama da nobreza interessada em sua “coragem” –, os irmãos saíram de sua morada com destino às montanhas rochosas, prolíferas em cavernas obscuras, apesar dos apelos da mãe em impedir que não se afastassem muito. Visto que a região ficava não muito longe da casa de Ian e Mia, a jornada não duraria tanto tempo – pelo menos na cabeça das crianças. Embora carregando simples galhos de árvores, o irmão, mais velho, segundo ele mesmo, estava munido de um eficaz estilingue "mágico", capaz de acertar as nuvens, enquanto a irmã – também segundo Ian – de um cajado de madeira místico "utilizado por gerações de magos grão-mestres da Abadia de Mamori".

Porém, crianças são sempre crianças, e apesar do tom sério e investigativo da excursão, uma vez que entraram na primeira caverna encontrada, puseram de lado suas confabulações heroicas, e começaram, tal como macacos, a brincar com os cipós que pendiam do teto.

O que não sabiam – e nem sua mãe – era que, apesar da pacificidade dos dragões, existia uma criatura em específico que não mantinha um comportamento draconiano padrão. Em praticamente todos os casos, os dragões ostentavam um porte pomposo, com escamas marrom-esverdeadas brilhantes, possuíam um semblante austero, e olhos compenetrados, e sempre se mostravam fortes e rígidos como um soldado real altamente treinado. Exceto em um caso, isso não era verdade. Havia um dentre eles que apresentava uma pele retorcida e mórbida, seca como frutos desidratados e destituída das impenetráveis escamas. Seu grasnado parecia um chiado zombeteiro, seus movimentos pareciam os de uma serpente e sua constituição corpórea era pequena – comparado os outros – e quase débil, deixando transparecer em regiões como cabeça e costas, os ossos do crânio e coluna. Os olhos eram vermelhos e esquivos, e por toda a extensão da mandíbula, pelos negros, grossos e repulsivos cresciam. Esse era o dragão de barba negra. Seu ímpeto não se assemelhava em nada com seus irmãos maiores – e eram dele aqueles fios, parecidos com cipós, nos quais Ian e Mia se penduravam.

A realidade dos pequeninos fora mais cruel do que os piores pesadelos de sua mãe. Ian e Mia nunca mais foram vistos. Uma série de incursões, lideradas pelos homens mais bravos da aldeia, foi realizada nas montanhas sem sucesso, durante várias lunações, até que, em certa aurora, finalmente uma das cavernas que a horripilante criatura usava como covil fora descoberta por acaso – quando um membro da equipe puxou o fio negro que brotava do teto e que acabou desvelando-se como a parte de baixo do queixo da besta, deixando-a irritada. Incontáveis vezes haviam se deparado com tais especificidades sem perceber o quão perto estavam de seu objetivo!

Dentre as duas dezenas de guerreiros presentes na ocasião, um homem apenas voltou. Houvera uma luta de épicas proporções, com feridos em ambos os lados, porém, a conclusão da batalha não havia sido presenciada por ele. A informação de que Ian e Mia não estavam ali já não era mais relevante frente à dúvida se o dragão de barba negra havia sido derrotado.

Após o acontecido, entretanto, muitas crianças continuaram desaparecendo, às vezes até arrebatadas de suas casas na escuridão da madrugada, seguido por ganidos de cachorros e um estranho chiado zombeteiro. Outra leva de homens, guiada pelo único sobrevivente da trágica peleja, fora enviada ao covil da criatura, encontrando lá somente pelos negros e nada mais.

Se, de fato, o dragão de barba negra havia sido alvejado e morto, não se sabia. A verdade é que ele nunca mais fora visto. Entretanto, mesmo que nas atuais auroras os dragões estejam extintos, o desaparecimento de crianças ainda é uma constante...

Assim como os chiados zombeteiros na calada da noite

Histórias para ninar crianças, tomo I, capítulo 2

Biblioteca Real de Alódia

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